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A cozinha de Louise Bourrat desdobrou-se para mais um restaurante em Lisboa, mais descontraído do que o estrelado Boubou’s, mais substancial do que o Boubou’s Sandwich Club e mais popular do que o After Dark. Fomos conhecê-lo a Alfama.
Louise Bourrat é uma das chefs do momento em Lisboa. Se alguma vez a luso-francesa precisou de ser apresentada como a vencedora do programa Top Chef em França (aconteceu em 2022, quando tinha 27 anos e já chefiava a cozinha do Boubou’s há quatro), faz tempo que isso deixou de ser sequer motivo de conversa. Os seus restaurantes são casas de boa comida e bom ambiente, quebrando muitas vezes o molde do que se espera de cada um deles. No Príncipe Real, o Boubou’s, “um dos melhores restaurantes de fine dining de Lisboa” nas palavras do crítico Alfredo Lacerda, a alta cozinha anda de mãos dadas com a informalidade; por vezes, transforma-se em casino, com apostas em provas cegas de vinhos. Do outro lado da rua, o Boubou’s Sandwich Club passa a After Dark – à noite, evidente –, numa mistura de izakaya e speakeasy com o chef Matheus Simões Martins aos comandos.
O Gancho é a mais recente aventura de Louise e também está a marcar a noite lisboeta, embora noutra zona. Este novo restaurante fica em Alfama, no antigo talho que durante uma década albergou o Boi Cavalo de Hugo Brito, uma das instituições gastronómicas da cidade contemporânea (fechou em 2024). Aqui, não está com o irmão e a cunhada, Alexis e Agnes, sócios no Boubou’s, mas com o companheiro, o mixologista italiano Marco Cossu, que passou pelo Ninho e foi o derradeiro director-geral do Go A Lisboa, obrigado a encerrar devido às obras de expansão do metro.
Marco e Louise conheceram-se em 2021, numa esplanada do Intendente, a desconfinar ao som de Fela Kuti. Ele estava há apenas dois meses em Portugal. Marco chegou a 8 de Março – e foi a 8 de Março que, este ano, abriu o Gancho. Dia da Mulher, frisa, partilhando o simbolismo da data com Louise. É ele quem está à frente do restaurante, no dia-a-dia, quem calibra o ambiente, quem gere expectativas, quem lhe acrescenta personalidade com critério nos vinhos e nos cocktails – mas, para quem sabe ao que vai, é pela comida dela que irá primeiro. Depois voltará tanto pela carta como pela atmosfera que vai encontrar.
“É um restaurante descontraído, mas não no serviço nem na qualidade da comida”, afirma Marco, que o caracteriza à italiana: “é uma espécie de trattoria”. No vocabulário corrente, é uma neo-tasca. A toalha é de papel, os guardanapos são de pano. Apresenta, no entanto, algumas especificidades. Além de misturar influências minhotas e transmontanas (onde Louise tem raízes), francesas e italianas da Sardenha (de onde vem Marco), a carta e o bom ambiente, com banda sonora adaptada a cada momento da noite – e a cada noite –, são acompanhados com rigor no serviço e na cozinha, sem concessões nos “standards”. Mais: o Gancho não quer ser uma ilha numa Alfama gentrificada aonde se vai de propósito e se passa com desinteresse pelo resto do bairro. Sem divulgação formal, Marco diz que faz 10% de desconto aos vizinhos e a quem quer que lá vá mais do que três vezes. O método de fidelização é o de qualquer outro restaurante de bairro: ele vai lembrar-se.
A conversa está boa, mas vamos comer. Comecemos pelos arancini de cabidela (3,5€). Ainda estamos para decidir se é preferível abrir a refeição com eles, para sermos logo sugados pelo tipo de flashback que abalroa o crítico Anton Ego, em Ratatouille, ou se é melhor guardá-lo para o fim, para embrulhar a memória do Gancho num bonito laço de sangue e arroz. Seja qual for a decisão, o que nos espera antes ou depois dos arancini está à altura dessa experiência. As azeitonas sicilianas (3€) para ir abrindo o apetite; o pão da Gleba com manteiga de farinheira, para ir ganhando balanço; e o ovo biológico “mimosa” (2€), um petisco vintage para viajar para as tabernas de outros tempos; ou ainda as ostras com molho mignonette (3€/15€) e as croquetas de carne com mostarda de mel (3€).
O Gancho é um daqueles sítios que, dando para ir sozinho, o melhor é levar companhia e perder a cabeça na carta. Pedir de tudo. E voltar a fazê-lo na vez seguinte. O menu muda mensalmente. Quando a Time Out lá foi, havia um torricado de sardinha (absolutamente sem espinhas, literal e gastronomicamente) que já não está disponível. Mandam os produtos da época. Por outro lado, há bestsellers que dificilmente sairão do menu, como é o caso do tártaro de vaca à Brás (12€ meia dose, 22€ a dose), que merece olhos atentos para que nenhum comensal roube mais do que a parte que lhe cabe. Provámos ainda o prato mais substancial, o polvo grelhado com batata doce e aioli de harissa (26€), tenro, cheio de sabor e suficiente para fechar a refeição da mesa toda. O porco preto tonato (12€, 22€), a pasta alla zozzona (16€), o risotto com cogumelos selvagens e rábano picante (16€) e um clássico gaulês, o peixe do dia à la grenobloise (preço a depender do espécime), são as demais opções.
Sem esquecer a couve-coração grelhada com molho picante (11€, 18€), que é um prato central do Gancho, mas que não provámos na nossa visita. O que se resolveria mais tarde, no Chefs on Fire – onde, mesmo tentando muito naquele sábado soalheiro em Cascais, não comemos nada melhor do que esse “bite” de Louise. Não pode falhar. Nem é de mais, até porque as sobremesas, já se sabe, não ocupam lugar – e aqui o tiramisù (6€), os profiteroles de chocolate quente com baunilha (6€) e a tarte de queijo basca (7€) só não vêm para a mesa se toda a gente for conquistada pelo entusiasmo juvenil de experimentar o crème brûlée com CBD, um dos componentes da cannabis, que tem propriedades anti-inflamatórias e relaxantes, e é usada no tratamento de várias doenças (os efeitos psicoactivos da planta vêm de outro componente, o THC). O (ligeiríssimo) alívio do stress custa 7€ a tigela.
“O Gancho tem muito a ver com nostalgia – o sabor do CBD traz muita nostalgia por aqui”, diz Louise, soltando uma gargalhada. Mais a sério, a chef diz que ajuda a digestão e a descontrair. “E a dormirem bem”, acrescenta Marco. “Eu gosto muito do sabor também”, adianta Louise, que vê no Gancho um espaço onde pode explorar uma cozinha bem mais descontraída do que no Boubou’s. “Amo muito o meu restaurante gastronómico, mas precisava de um lugar onde pudesse fazer uma comida de conforto, de tacho, não uma cozinha de cérebro, mas uma cozinha do coração, muito simples. Queria muito voltar um pouquinho às minhas raízes portuguesas.” As receitas da avó Fátima, de Ponte de Lima, são por isso uma inspiração constante e prova disso mesmo são dois itens que já passaram pela carta: o bacalhau à Brás e os pastéis de bacalhau (ou, no caso, seriam bolinhos?).
Se no Gancho a influência da Sardenha se nota mais nos vinhos (de baixa intervenção) e nos digestivos (como o mirto, um licor tradicional servido fresco, 5€), não deixam de aparecer pratos que também fazem sobressair as raízes de Marco. Na calha estão, por exemplo, os culurgiones, uns ravioli com recheio de batata e queijo pecorino. Mas nunca para o lugar dos arancini, da couve-coração e do porco preto. Esses nunca saem. “O objectivo, não vou mentir, é de fazer uma carta só com bombas”, ri-se Louise. “O tártaro, por exemplo, entrou dois meses depois da abertura. Mas já vai ser muito difícil de tirar…”
A aceitação, claro, depende da clientela – como é? Louise Bourrat garante que o restaurante tem uma “mistura super equilibrada”, entre foodies, portugueses ou não, e locais de “muitos perfis diferentes”. “Temos vizinhos desde o primeiro dia”, conta. “Estamos bem contentes.” Marco Cossu corrobora: “Muitos portugueses. O primeiro booking foi de um português. [O Gancho] não é como muitos outros lugares que estão a abrir agora, cujo target são obviamente as pessoas que têm mais dinheiro, lugares que não são acessíveis para todos. A nossa ideia era ter comida e preços para todos.”
“Antes de ser o Boi Cavalo, isto era uma tasca de fado”, recorda Louise. “Portanto, era importante tentar preservar um bocadinho da história e da cultura local, não fazer uma coisa completamente fora. Temos que preservar, quer seja com a comida, quer seja com os drinks, quer seja com o equipamento, as cadeiras, os pratos. Tem que ser daqui. Podemos fazer do nosso jeito, com a nossa identidade, mas é importante preservar isso”, sublinha. “Também porque é um bairro que, nos últimos dez anos, teve muitas pessoas, que moravam aqui, a sair. Ao mesmo tempo, chegaram muitas pessoas com ofertas para turistas, com uma comida tradicional mas Pingo Doce. E é triste, porque é um bairro que merece muito mais vida e muitos mais projectos interessantes.” O Gancho é certamente um deles.
Rua do Vigário, 70B (Alfama). 910 740 181. Ter-Sáb 19.00-02.00
Está a par dos melhores novos restaurantes em Lisboa? Não fique para trás. Na Avenida, já abriu o JNcQUOI Fish – mais fresco é impossível. Se procura alternativas de mar, mas com vistas de rio, dê um salto ao Almadrava. Não muito longe, o Solo é uma boa alternativa de almoço, para quem gosta de surpresas e de um cheirinho a fine dining. Brunch num palácio? Também há e fica nos Anjos, o bairro que a Time Out elegeu como um dos mais cool do mundo e onde não faltam sítios para comer divinamente.
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